Ao fundo, a devastada Praça Rodrigues dos Santos para implantação de um camelódromo |
“São 4 décadas de destruição sistemática, a começar por nosso patrimônio arquitetônico”
Em
1910, um navio lotado de imigrantes nordestinos que rumavam para o Acre, ainda
em decorrência da primeira corrida da borracha, aporta em Santarém. Nele estava
a família Barbosa dos Santos, todos muito brancos, no Nordeste conhecidos como
galegos, naturais de Sobral. Ficaram deslumbrados com a beleza do local e
impressionados com a fartura de alimentos, mas seguiram viagem, rumo ao seu
destino.
Passando
em Itacoatiara, em 5 de dezembro de 1910, Dona Tereza entra em trabalho de
parto, a família desembarca na cidade para o nascimento de um menino que se
chamou Abdon. Esse fato determinou a mudança nos planos da família que decidiu
voltar para Santarém, lugar que os encantou e onde se radicaram para toda a
vida.
Em 9
de agosto de 1907, nasce em Santarém uma menina mais preta do que parda de nome
Silvia, filha de uma preta de origem angolana com um caboclo índio bem sucedido
no comércio, conhecido como major Cantídio, ele casado com uma portuguesa e
mantendo uma segunda família em uma pequena fazenda na costa do Amazonas,
próximo ao Pinduri.
Edwirges,
era o nome da preta, nascida em Santarém. Assim como sua mãe, vô de Sílvia,
ambas viveram no período da escravidão, mas Edwirges já nasceu forra. Foi
batizada com o nome de Edwirges Colares da Conceição. Colares emprestado ao
padrinho e Conceição em homenagem à padroeira do lugar. Os pretos tinham sua
origem apagada.
Sílvia foi reconhecida civilmente e viveu sobre a influência do pai e da mãe convivendo com ambas as famílias de Cantídio. Batizada como Sílvia Castro, herdando o Castro de seu pai.
Cedo
se dedica ao trabalho, produzindo e vendendo guloseimas como doces e mingaus da
culinária local, saber adquirido entre as duas casas. Herda de seu pai as
virtudes do comercio e de sua mãe as habilidades culinárias. Sua mãe Edwirges
tinha um filho de relacionamento anterior, assim como uma irmã, tia de Silvia,
que teve muitos filhos. Com essa família materna era a maior integração de
Sílvia.
No início
dos anos 30, Sílvia já uma empreendedora, inicia a compra de um terreno em
muitas parcelas e na sequência casa-se com Abdon, juntos constroem uma casa. E
em 1934, com o nascimento de sua primeira filha, mudam-se para essa casa. É
nesse terreno que residem até hoje os Barbosa dos Santos, quase um século.
Silvia
e Abdon tiveram quatro filhos, a mais nova, nascida em 1940, morreu aos três
anos vítima de difteria. Época da guerra e dos raros momentos de grande
escassez de provimentos na cidade. Período em que Sílvia e Abdon trabalham
dobrado. Produzindo e vendendo milhares de bolinhos de farinha d’água, jerimum,
mingaus e bananas fritas entre outras guloseimas e vendendo em um carro de boi,
latões com água retirada do Tapajós para as residências mais afastadas.
Rompendo
com o patriarcado latente na família nordestina, essa família viveu sob o
regime matriarcal e dentro dos costumes e cultura tapajoara, sob a liderança de
Sílvia. Abdon teve apenas o privilégio de ir ao cartório registrar os filhos,
aos quais deu o seu sobrenome Barbosa dos Santos, desaparecendo o Castro de
Sílvia.
Família
de tradição católica e fortes ligações com a cultura popular, Abdon organizava
apresentações de quadrilhas, cordões e pássaros na rua em frente sua casa,
enquanto Silvia, ligada aos lundus e cantorias cuidava da comilança. Ele
torna-se um prático velejador de canoa a vela, e nas folgas escolares leva os
filhos para a fazenda de Edwirges na costa do Amazonas, onde ia periodicamente
levar e buscar mantimentos.
Existiam
conflitos culturais. A família de Abdon, a maioria mulheres, (cedo ele perde o
pai em acidente na serra do Piquiatuba, o irmão muda-se para Belém com a
família, uma irmã casa e muda-se para Terra Santa, onde falece junto com a
criança, em trabalho de parto do primeiro filho. Ficam em Santarém sua mãe,
duas tias e uma jovem adotada por elas ainda bebê, filha de uma migrante
nordestina que falece sozinha no porto).
A mãe
de Abdon só se referia a Sílvia como a preta do Abdon, em um racismo explicito
muito comum aos cearenses da época. Hábitos alimentares e de higiene também
produziam estranhamento, mas aos poucos vão sendo assimilados, os nativos
adquirindo novos costumes e saberes, especialmente a agricultura e os migrantes
uma nova cultura e se integrando ao ambiente amazônico.
Desde
o final do século XIX, e durante todo o século XX, Santarém recebe imigrantes nordestinos,
a grande maioria cearenses, mas nunca em grande fluxo, excetuando-se o ano de
1942, na segunda corrida da borracha.
É a
partir da grande seca de 1950 que chegam a Santarém às centenas, mas ainda
tendo como anseio principal o acesso a terras férteis e a atividade agrícola
familiar.
Não
param de chegar ano a ano. Em 1958, outro grande fluxo, que se repete em 1968,
decorrentes de grandes secas. É a partir dos anos 60 que se inicia uma grande
transformação na atividade econômica dos cearenses imigrantes nas terras
tapajoaras.
Essa
farta mão de obra, alguns com vínculos familiares, passa a trabalhar no
comércio varejista de porta em porta, também em pequenas barracas e
interiorizando as vendas. Todos à serviço de alguns comerciantes cearenses já
bem estabelecidos. Montam uma grande rede de comércio que desde esses tempos
aos dias de hoje desconhece o que é pagar imposto.
É o
período que se evidenciam os conflitos culturais e os interesses econômicos
divergentes. A mobilidade e êxito econômico dos nordestinos começa a incomodar
a elite econômica local, que os rejeita em seus ambientes e cria muitas
adjetivações para se referir aos cearenses, incluindo a palavra arigó.
Os
cearenses, que nessa terra e vendendo para esse povo, superaram a miséria,
prosperaram e enriqueceram, incapazes de distinguir nossa população de uma
“elite” excludente, subletrada, arrogante, monopolista e boçal, passa a adjetivar os nativos de preguiçosos,
ladrões, quase uma sub raça. Isso em decorrência de sua ignorância, preconceito
e racismo arraigado de muitos (o Ceará é o estado nordestino com menor número
de pretos e onde quase não se vê índios).
O
estranhamento entre duas culturas diferentes levou a conclusões equivocadas.
Seriam preguiçosos um povo que se embrenha nas matas para extrair castanha, cumaru,
pau rosa, copaíba, andiroba. Que enfrenta os igapós para extrair açaí, que
passa as noites em claro para apanhar o pescado? E toda a rica produção
artesanal, não seria trabalho?
Estavam
convivendo com um povo que desconhecia a falta d’água, a fome e terras
inférteis; todos da área urbana tinham acesso a educação, de hábitos
alimentares mais diversificados e hábitos de higiene muito diferentes, o que
incluía de 3 a 4 banhos diários. E, principalmente, com acesso a terra e a
propriedade mais fáceis.
Mesmo
considerando a dinâmica das transformações sociais e culturais no decorrer do
tempo, que se acentua a partir dos anos 70. Ao povo nativo, prosperar
significava ter uma vida confortável com um bom teto, acesso a educação, a boa
alimentação e a uma profissão, mesmo que extrativista. Por aqui só se migrava
para estudar ou se aperfeiçoar em uma profissão.
Ainda hoje não compreendem que o povo
tapajoara não vive sob a lógica do acúmulo. São visões de mundo diametralmente
opostas. Toda essa narrativa familiar é para contextualizar uma história de
conflito cultural que precisa ser enfrentado sem disfarces.
O
acúmulo de riqueza pela colônia nordestina cearense não incomoda e nunca
incomodou, essa é uma lógica típica dos que migram, a produção de riqueza pessoal
como símbolo de um vencedor. O que não dá para entender é o acúmulo de rancor e
desprezo ruminado ao longo dos anos por uma parte da comunidade nordestina
contra nossa história e tradições, hoje sintetizados na figura de Nélio Aguiar.
Sempre
o vi como um dissimulado, que politicamente move-se feito biruta de aeroporto,
vai para onde bate o vento desde que lhe traga vantagens. Mas esse não é um
problema, políticos em regra são dissimulados. Nélio não teve infância, não
tomou banho de rio e se o fez foi com a turma errada, no caminho errado,
candiru furou sua calça e o fez odiar nossos costumes, cultura e tradições.
Acompanho-o
desde os tempos em que corria os bares da cidade distribuindo gratuitamente
DVDs de bandas de forro nordestino para serem exibidos nos telões e TVs nesses
ambientes. Agora ligo esse fato as suas atitudes como prefeito que revelam um
enorme desprezo por nossa história. Mostram com muita clareza o que parece ser
um plano de destruição de nossa cultura, praias e memória.
São
quatro décadas de destruição sistemática, a começar por nosso patrimônio
arquitetônico colonial, que foi sendo adquirido e demolido, não pelo tempo, mas
com método. A remoção das telhas para que a chuva se encarregasse de deteriorar
as estruturas, a maioria construída com adobo. O que não foi demolido houve a
descaracterização das fachadas. Um crime continuado.
Adoradores do dinheiro, cimento, tijolo e
concreto, de péssimo senso estético, erguendo galpões e prédios em terrenos
onde não cabe mais o verde e edificando puxadinhos horrorosos, sempre a partir
de pressão parlamentar de vereadores da colônia nordestina, como no entorno do
Mercado Modelo.
Por
trás desses puxadinhos que se espraiam até o Mercadão 2000, existe uma máfia
que se apropriou, controla e aluga os espaços. São cearenses e certamente Nélio
Aguiar deve saber quem são.
O
excesso de dinheiro nas mãos de gente inculta, rancorosa e ávida por lucros
pode provocar danos irreparáveis ao povo e cultura de um lugar, e é o que vem
ocorrendo com Santarém. A lógica do acúmulo vem se sobrepondo a todo e qualquer
outro valor, especialmente aos culturais e históricos de nossa terra.
Vocês
encontraram um oásis que os recebeu, e que, se não os acolheu como gostariam,
os proporcionou um futuro com dignidade e riqueza.
Nélio
Aguiar, você não vale meio Zé Azevedo, que em sua poesia e arte sabe tão bem
integrar esses dois mundos, em seu canto Tapajós e Ceará são um só. Poeta capaz
de criar uma linda canção dedicada ao maestro Isoca, símbolo da cultura local.
Praia do Maracanã, em Santarém: a nova arquitetura. |
Você
não vale um Nato Aguiar, que reconhece na cultura desse povo, beleza, lirismo,
poesia, sabedoria e grandeza e a interpreta em seu canto com entrega apaixonada
de quem nutre por ela grande admiração.
Dois
cidadãos de origem nordestina como você, que souberam ter gratidão,
generosidade e respeito, coisa que você desconhece.
Você
não está sozinho, se sente respaldado por parte de uma comunidade que pensa
igual a você, são os helenilsons da vida. O limite de minha ambição é ser
suficientemente esclarecido para lhe dizer que você é pequeno, sem grandeza,
vingativo, mesquinho, árido como a terra de onde fugiram seus pais, e o máximo
aonde pôde chegar, foi se igualar aos boçais subletrados que rejeitaram os
seus. Você é ínfimo!
Eu não
quero ser educado, político, ou diplomático, quero que minhas palavras o atinjam
com a mesma violência simbólica com a qual você vem nos agredindo ao demolir
nossa história, destruir nossas praias e ferir nossa estima.
Esse
apartheid velado, regado a preconceito e racismo dissimulado foi erguido por
gente como você. Chafurdem nesse gueto bisonho se assim são felizes, mas
respeitem nossa história, nossa cultura, costumes e tradições. Não somos nós os forasteiros e até em casa de
mãe Joana há limites.
A
colônia nordestina é quase um terço de nossa população, e ela não é gado,
muitos têm afeto por esse lugar, se reconhecem como filhos dessa terra e são
gratos, pois aqui encontraram a prosperidade que trouxe dignidade as suas
vidas.
Você
deveria fazer shoppings populares decentes nos grandes bairros, restaurar as
fachadas, praças e logradouros do centro histórico, propondo aos comerciantes
incentivos para que removam as aberrações estéticas que escondem o pouco que
restou de fachada de algumas casas. Mas você quer mais puxadinhos para seus
patrícios.
Você
deveria propor a remoção dos dois mercados e puxadinhos para no local edificar
o nosso centro de convenções. Não é o aeroporto a porta de entrada de nossa
cidade. Para cada mil passageiros que chegam ao aeroporto, cinco mil
desembarcam em nossos portos. E os rios Tapajós e Amazonas são o nosso cartão
postal.
Mas,
você escolheu o local para o centro de convenções próximo ao aeroporto, em
local de difícil acesso para a população. Mesmo sem conhecer maiores detalhes,
essa obra tem cara de especulação e cheiro de especulação imobiliária. Só
favorecerá aos que possuem terras naquele fim de mundo.
Você deve ser banido da vida política pelo não voto de nosso povo, porque você é um projeto de destruição de nossa identidade cultural. Não queremos viadutos sobre as praias,
queremos caminhar com os pés descalços nas areias brancas e limpas
da beira do Tapajós. Essa é nossa ostentação, esse é o nosso prazer e ritual
sagrado. Somos tapajoaras!
Seus
filhos e netos hão de ouvir João Gomes e dançar carimbó, como meu avô ouvia
Luiz Gonzaga e velejava em canoa à vela até a costa do Amazonas. Enfie essa sua mágoa e rancor ancestral e a
riqueza material dos de sua laia goela abaixo.
Nélio Aguiar a sua saída já está programada pela porta dos fundos. Nossa cultura e história são mais fortes, e você perderá!
TEXTO E FOTOGRAFIAS PAULO CIDMIL - PAULO É DIRETOR DE PRODUÇÃO ARTÍSTICA E ATIVISTA CULTURAL. ESCREVE REGULARMENTE NO PORTAL JC. – FONTE: BLOG DO JESO
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