terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A VINGANÇA DO ARIGÓ – POR PAULO CIDMIL

Ao fundo, a devastada Praça Rodrigues dos Santos para implantação de um camelódromo

“São 4 décadas de destruição sistemática, a começar por nosso patrimônio arquitetônico”

Em 1910, um navio lotado de imigrantes nordestinos que rumavam para o Acre, ainda em decorrência da primeira corrida da borracha, aporta em Santarém. Nele estava a família Barbosa dos Santos, todos muito brancos, no Nordeste conhecidos como galegos, naturais de Sobral. Ficaram deslumbrados com a beleza do local e impressionados com a fartura de alimentos, mas seguiram viagem, rumo ao seu destino.

Passando em Itacoatiara, em 5 de dezembro de 1910, Dona Tereza entra em trabalho de parto, a família desembarca na cidade para o nascimento de um menino que se chamou Abdon. Esse fato determinou a mudança nos planos da família que decidiu voltar para Santarém, lugar que os encantou e onde se radicaram para toda a vida.

Em 9 de agosto de 1907, nasce em Santarém uma menina mais preta do que parda de nome Silvia, filha de uma preta de origem angolana com um caboclo índio bem sucedido no comércio, conhecido como major Cantídio, ele casado com uma portuguesa e mantendo uma segunda família em uma pequena fazenda na costa do Amazonas, próximo ao Pinduri.

Edwirges, era o nome da preta, nascida em Santarém. Assim como sua mãe, vô de Sílvia, ambas viveram no período da escravidão, mas Edwirges já nasceu forra. Foi batizada com o nome de Edwirges Colares da Conceição. Colares emprestado ao padrinho e Conceição em homenagem à padroeira do lugar. Os pretos tinham sua origem apagada.

Sílvia foi reconhecida civilmente e viveu sobre a influência do pai e da mãe convivendo com ambas as famílias de Cantídio. Batizada como Sílvia Castro, herdando o Castro de seu pai.

Cedo se dedica ao trabalho, produzindo e vendendo guloseimas como doces e mingaus da culinária local, saber adquirido entre as duas casas. Herda de seu pai as virtudes do comercio e de sua mãe as habilidades culinárias. Sua mãe Edwirges tinha um filho de relacionamento anterior, assim como uma irmã, tia de Silvia, que teve muitos filhos. Com essa família materna era a maior integração de Sílvia.

No início dos anos 30, Sílvia já uma empreendedora, inicia a compra de um terreno em muitas parcelas e na sequência casa-se com Abdon, juntos constroem uma casa. E em 1934, com o nascimento de sua primeira filha, mudam-se para essa casa. É nesse terreno que residem até hoje os Barbosa dos Santos, quase um século.

Silvia e Abdon tiveram quatro filhos, a mais nova, nascida em 1940, morreu aos três anos vítima de difteria. Época da guerra e dos raros momentos de grande escassez de provimentos na cidade. Período em que Sílvia e Abdon trabalham dobrado. Produzindo e vendendo milhares de bolinhos de farinha d’água, jerimum, mingaus e bananas fritas entre outras guloseimas e vendendo em um carro de boi, latões com água retirada do Tapajós para as residências mais afastadas.

Rompendo com o patriarcado latente na família nordestina, essa família viveu sob o regime matriarcal e dentro dos costumes e cultura tapajoara, sob a liderança de Sílvia. Abdon teve apenas o privilégio de ir ao cartório registrar os filhos, aos quais deu o seu sobrenome Barbosa dos Santos, desaparecendo o Castro de Sílvia.

Família de tradição católica e fortes ligações com a cultura popular, Abdon organizava apresentações de quadrilhas, cordões e pássaros na rua em frente sua casa, enquanto Silvia, ligada aos lundus e cantorias cuidava da comilança. Ele torna-se um prático velejador de canoa a vela, e nas folgas escolares leva os filhos para a fazenda de Edwirges na costa do Amazonas, onde ia periodicamente levar e buscar mantimentos.

Existiam conflitos culturais. A família de Abdon, a maioria mulheres, (cedo ele perde o pai em acidente na serra do Piquiatuba, o irmão muda-se para Belém com a família, uma irmã casa e muda-se para Terra Santa, onde falece junto com a criança, em trabalho de parto do primeiro filho. Ficam em Santarém sua mãe, duas tias e uma jovem adotada por elas ainda bebê, filha de uma migrante nordestina que falece sozinha no porto).

A mãe de Abdon só se referia a Sílvia como a preta do Abdon, em um racismo explicito muito comum aos cearenses da época. Hábitos alimentares e de higiene também produziam estranhamento, mas aos poucos vão sendo assimilados, os nativos adquirindo novos costumes e saberes, especialmente a agricultura e os migrantes uma nova cultura e se integrando ao ambiente amazônico.

Desde o final do século XIX, e durante todo o século XX, Santarém recebe imigrantes nordestinos, a grande maioria cearenses, mas nunca em grande fluxo, excetuando-se o ano de 1942, na segunda corrida da borracha.

É a partir da grande seca de 1950 que chegam a Santarém às centenas, mas ainda tendo como anseio principal o acesso a terras férteis e a atividade agrícola familiar.

Não param de chegar ano a ano. Em 1958, outro grande fluxo, que se repete em 1968, decorrentes de grandes secas. É a partir dos anos 60 que se inicia uma grande transformação na atividade econômica dos cearenses imigrantes nas terras tapajoaras.

Essa farta mão de obra, alguns com vínculos familiares, passa a trabalhar no comércio varejista de porta em porta, também em pequenas barracas e interiorizando as vendas. Todos à serviço de alguns comerciantes cearenses já bem estabelecidos. Montam uma grande rede de comércio que desde esses tempos aos dias de hoje desconhece o que é pagar imposto.

É o período que se evidenciam os conflitos culturais e os interesses econômicos divergentes. A mobilidade e êxito econômico dos nordestinos começa a incomodar a elite econômica local, que os rejeita em seus ambientes e cria muitas adjetivações para se referir aos cearenses, incluindo a palavra arigó.

Os cearenses, que nessa terra e vendendo para esse povo, superaram a miséria, prosperaram e enriqueceram, incapazes de distinguir nossa população de uma “elite” excludente, subletrada, arrogante, monopolista e boçal,  passa a adjetivar os nativos de preguiçosos, ladrões, quase uma sub raça. Isso em decorrência de sua ignorância, preconceito e racismo arraigado de muitos (o Ceará é o estado nordestino com menor número de pretos e onde quase não se vê índios).

O estranhamento entre duas culturas diferentes levou a conclusões equivocadas. Seriam preguiçosos um povo que se embrenha nas matas para extrair castanha, cumaru, pau rosa, copaíba, andiroba. Que enfrenta os igapós para extrair açaí, que passa as noites em claro para apanhar o pescado? E toda a rica produção artesanal, não seria trabalho?

Estavam convivendo com um povo que desconhecia a falta d’água, a fome e terras inférteis; todos da área urbana tinham acesso a educação, de hábitos alimentares mais diversificados e hábitos de higiene muito diferentes, o que incluía de 3 a 4 banhos diários. E, principalmente, com acesso a terra e a propriedade mais fáceis.

Mesmo considerando a dinâmica das transformações sociais e culturais no decorrer do tempo, que se acentua a partir dos anos 70. Ao povo nativo, prosperar significava ter uma vida confortável com um bom teto, acesso a educação, a boa alimentação e a uma profissão, mesmo que extrativista. Por aqui só se migrava para estudar ou se aperfeiçoar em uma profissão.

 Ainda hoje não compreendem que o povo tapajoara não vive sob a lógica do acúmulo. São visões de mundo diametralmente opostas. Toda essa narrativa familiar é para contextualizar uma história de conflito cultural que precisa ser enfrentado sem disfarces.

O acúmulo de riqueza pela colônia nordestina cearense não incomoda e nunca incomodou, essa é uma lógica típica dos que migram, a produção de riqueza pessoal como símbolo de um vencedor. O que não dá para entender é o acúmulo de rancor e desprezo ruminado ao longo dos anos por uma parte da comunidade nordestina contra nossa história e tradições, hoje sintetizados na figura de Nélio Aguiar.

Sempre o vi como um dissimulado, que politicamente move-se feito biruta de aeroporto, vai para onde bate o vento desde que lhe traga vantagens. Mas esse não é um problema, políticos em regra são dissimulados. Nélio não teve infância, não tomou banho de rio e se o fez foi com a turma errada, no caminho errado, candiru furou sua calça e o fez odiar nossos costumes, cultura e tradições.

Acompanho-o desde os tempos em que corria os bares da cidade distribuindo gratuitamente DVDs de bandas de forro nordestino para serem exibidos nos telões e TVs nesses ambientes. Agora ligo esse fato as suas atitudes como prefeito que revelam um enorme desprezo por nossa história. Mostram com muita clareza o que parece ser um plano de destruição de nossa cultura, praias e memória.

São quatro décadas de destruição sistemática, a começar por nosso patrimônio arquitetônico colonial, que foi sendo adquirido e demolido, não pelo tempo, mas com método. A remoção das telhas para que a chuva se encarregasse de deteriorar as estruturas, a maioria construída com adobo. O que não foi demolido houve a descaracterização das fachadas. Um crime continuado.

 Adoradores do dinheiro, cimento, tijolo e concreto, de péssimo senso estético, erguendo galpões e prédios em terrenos onde não cabe mais o verde e edificando puxadinhos horrorosos, sempre a partir de pressão parlamentar de vereadores da colônia nordestina, como no entorno do Mercado Modelo.

Por trás desses puxadinhos que se espraiam até o Mercadão 2000, existe uma máfia que se apropriou, controla e aluga os espaços. São cearenses e certamente Nélio Aguiar deve saber quem são.

O excesso de dinheiro nas mãos de gente inculta, rancorosa e ávida por lucros pode provocar danos irreparáveis ao povo e cultura de um lugar, e é o que vem ocorrendo com Santarém. A lógica do acúmulo vem se sobrepondo a todo e qualquer outro valor, especialmente aos culturais e históricos de nossa terra.

Vocês encontraram um oásis que os recebeu, e que, se não os acolheu como gostariam, os proporcionou um futuro com dignidade e riqueza.

Nélio Aguiar, você não vale meio Zé Azevedo, que em sua poesia e arte sabe tão bem integrar esses dois mundos, em seu canto Tapajós e Ceará são um só. Poeta capaz de criar uma linda canção dedicada ao maestro Isoca, símbolo da cultura local.

Praia do Maracanã, em Santarém: a nova arquitetura.

Você não vale um Nato Aguiar, que reconhece na cultura desse povo, beleza, lirismo, poesia, sabedoria e grandeza e a interpreta em seu canto com entrega apaixonada de quem nutre por ela grande admiração.

Dois cidadãos de origem nordestina como você, que souberam ter gratidão, generosidade e respeito, coisa que você desconhece.

Você não está sozinho, se sente respaldado por parte de uma comunidade que pensa igual a você, são os helenilsons da vida. O limite de minha ambição é ser suficientemente esclarecido para lhe dizer que você é pequeno, sem grandeza, vingativo, mesquinho, árido como a terra de onde fugiram seus pais, e o máximo aonde pôde chegar, foi se igualar aos boçais subletrados que rejeitaram os seus. Você é ínfimo!

Eu não quero ser educado, político, ou diplomático, quero que minhas palavras o atinjam com a mesma violência simbólica com a qual você vem nos agredindo ao demolir nossa história, destruir nossas praias e ferir nossa estima.

Esse apartheid velado, regado a preconceito e racismo dissimulado foi erguido por gente como você. Chafurdem nesse gueto bisonho se assim são felizes, mas respeitem nossa história, nossa cultura, costumes e tradições.  Não somos nós os forasteiros e até em casa de mãe Joana há limites.

A colônia nordestina é quase um terço de nossa população, e ela não é gado, muitos têm afeto por esse lugar, se reconhecem como filhos dessa terra e são gratos, pois aqui encontraram a prosperidade que trouxe dignidade as suas vidas.

Você deveria fazer shoppings populares decentes nos grandes bairros, restaurar as fachadas, praças e logradouros do centro histórico, propondo aos comerciantes incentivos para que removam as aberrações estéticas que escondem o pouco que restou de fachada de algumas casas. Mas você quer mais puxadinhos para seus patrícios.

Você deveria propor a remoção dos dois mercados e puxadinhos para no local edificar o nosso centro de convenções. Não é o aeroporto a porta de entrada de nossa cidade. Para cada mil passageiros que chegam ao aeroporto, cinco mil desembarcam em nossos portos. E os rios Tapajós e Amazonas são o nosso cartão postal.

Mas, você escolheu o local para o centro de convenções próximo ao aeroporto, em local de difícil acesso para a população. Mesmo sem conhecer maiores detalhes, essa obra tem cara de especulação e cheiro de especulação imobiliária. Só favorecerá aos que possuem terras naquele fim de mundo.

Você deve ser banido da vida política pelo não voto de nosso povo, porque você é um projeto de destruição de nossa identidade cultural. Não queremos viadutos sobre as praias,

queremos caminhar com os pés descalços nas areias brancas e limpas da beira do Tapajós. Essa é nossa ostentação, esse é o nosso prazer e ritual sagrado. Somos tapajoaras!

Seus filhos e netos hão de ouvir João Gomes e dançar carimbó, como meu avô ouvia Luiz Gonzaga e velejava em canoa à vela até a costa do Amazonas.  Enfie essa sua mágoa e rancor ancestral e a riqueza material dos de sua laia goela abaixo.

Nélio Aguiar a sua saída já está programada pela porta dos fundos. Nossa cultura e história são mais fortes, e você perderá!

TEXTO E FOTOGRAFIAS PAULO CIDMIL - PAULO É DIRETOR DE PRODUÇÃO ARTÍSTICA E ATIVISTA CULTURAL. ESCREVE REGULARMENTE NO PORTAL JC. – FONTE: BLOG DO JESO

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